quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Crítica de Vem Vai em Recife-PE

Notícias daTerça-feira, 20 de novembro de 2007.

DIARIO DE PERNAMBUCO Caderno Viver

Cia livre // Ousadia e paixão para falar sobre a morte

Essa coisa de falar de mortos pode causar arrepios em muita gente viva. O assunto é delicado. Há muitas vertentes de pensamentos e crenças sobre o que acontece com o ser humano depois dos últimos suspiros na Terra. Existe uma outra vida ou é o fim de tudo? Essa pergunta inquieta.

A cia.Livre, de São Paulo, estudou, investigou e transformou numa cena vigorosa essas questões a partir da perspectiva dos ameríndios e dos rituais indígenas. O espetáculo Vemvai - o caminho dos mortos fez duas sessões no Nascedouro de Peixinhos, sábado e domingo, dentro da programação do 10º Festival Recife do Teatro Nacional.

O grupo poderia até ter ficado espantado com alguns incidentes antes das apresentações no Recife. Primeiro, o veículo que transportava o grupo no trajeto do Crato (a trupe participou da Mostra Sesc Cariri de Cultura) ao Recife atropelou um cavalo que atravessou o caminho. Depois foi um motoqueiro. Por último, no dia do ensaio geral, um tiroteio ocorreu nas imediações do antigo matadouro e o ensaio foi suspenso. A sessão de sexta-feira à noite foi cancelada por problemas técnicos.

Nada disso tirou a força das duas récitas. Crianças, homens e mulheres jovens e velhos da comunidade e espectadores que vieram de longe conferiram o espetáculo dirigido por Cibele Forjaz, com texto de Newton Moreno e saíram estonteados. A platéia acompanhou essa representação sobre o processo de travessia para o além, do momento da morte, até a chegada ao outro lado. Os primeiros momentos foram os mais difíceis. O barulho do entorno, a falta de hábito de algumas crianças que falavam alto e comentavam as cenas. Mas o elenco dominou o público com maestria.

A peça é dividida em cinco atos, com cerca de duas horas de duração. O elemento narrativo que amarra a estrutura da peça é o vaká (duplo ou lama) para os Marubo. A montagem surpreende nas suas resoluções cênicas: morte ritual; a morte física; os ritos funerários; o caminho morte; a devoração pelos deuses celestes canibais e a conseqüente troca de pele. Depois de um longo trajeto está a"morte" do morto e sua transformação em "outro". Aí, entram todas as possibilidades de mudanças ou mortes simbólicas para se possa viver outra vida. É uma proposta também de se pensar a diferença e o respeito pelo outro (difícil tarefa cotidiana).

A trupe passeia por diversos gêneros teatrais. Começa com um ator anonimamente sentado junto ao público, que atende ao celular para explicar para sua mãe que está no teatro e não pode falar naquele momento. Já é a primeira jogada de mestre. No Nascedouro, as primeiras cenas foram desenvolvidas com atores e público no palco, com cortinas que se abrem e fecham e todos se deslocando pelo espaço. Um homem quer saber se vai morrer, o que acontece depois disso tudo.

Cibele comanda essa experiência sensorial, que o canto, a dança e as intervenções musicais (ao vivo) ruídos trazem para questionamentos contemporâneos sobre a ligação com o outro, o estrangeiro. A encenação, que faz parte de um projeto maior chamado Do canibalismo à Antropofagia, envereda pelo estudo sobre as cosmogonias da morte e traz esses signos para essa cultura ocidental. As sete portas e cinco espaços, que originalmente o público deveria atravessar foram concentrados no palco e na platéia, e todos fazem um vemvai nas duas direções. O espetáculo é ousado, amplo, profundo, comovente, engraçado e conta com um elenco apaixonado, febril, onde todos têm seu momento de destaque, e Lúcia Romano, atuação impecável. (Ivana Moura)

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